Nós o
chamávamos de Doutor Etevaldo, mas ele não era médico. Na verdade, era farmacêutico aposentado e
morava perto da minha casa, quase na subida da Santa Rita. O fato é que o bom homem manipulava remédios
homeopáticos e atendia a todos que necessitavam. Ah, e de graça!
Dono de
uma inteligência ímpar, normalmente demonstrava, além da bondade, uma paciência
muito grande com as crianças, qualidade que, no entanto, desaparecia por
completo quando alguma mãe dizia que o remédio “não adiantou nada” e,
questionada se havia cumprido a rotina de pingar as gotinhas de tantas em
tantas horas, reconhecia não ter executado corretamente a rotina.
Nesses momentos,
o Doutor Etevaldo subia nas tamancas e dava uma boa esculhambada na
reclamante. Fora isso, era uma alma
clara e leve, do tamanho do universo.
Mesmo o
seu filho, que chamávamos de Modesto, raramente conseguia irritá-lo. Não sabíamos o nome verdadeiro do Modesto; só
que ele havia ficado louco de estudar demais, segundo diziam. Se o doutor tinha os seus oitenta anos, o
Modesto devia ter uns sessenta: andava barbudo, descalço e carregava um porrete
que, vez por outra, usava para afugentar a molecada que corria atrás dele,
implicando e xingando.
Naquele
tempo, era comum levar as pessoas em surto psicótico para Barbacena, e deixá-las
internadas no hospício. E foi com muito
pesar, mas com a certeza de que estava fazendo o correto que, num dos excessos
do Modesto, o Doutor Etevaldo pegou o ônibus e levou o Modesto para a referida
cidade.
Lá
chegaram os dois e, como ambos achavam-se bem vestidos (foi um custo para
calçar sapatos no Modesto), barbeados e apresentáveis, a pergunta do atendente
foi inevitável: quem é o louco?
- Ele! –
apontou, imediatamente o Modesto, para o Doutor Etevaldo. Este, assustado e humilhado, com a pergunta e
a denúncia do Modesto, escolheu o pior lugar e a pior hora para dar um dos seus
pitis.
Dias
depois, estranhando a ausência do nosso doutor, algumas pessoas perguntaram ao
Modesto (que havia retornado tranquilamente a São João) o paradeiro do sr.
Etevaldo. A resposta não poderia ser
mais clara:
- Ah,
ele estava muito nervoso; tive que internar!
Bom,
resumo da história é que fizemos uma comitiva para ir resgatar o nosso
benemérito lá no hospício em Barbacena. Voltando de carro (fomos num dos dois únicos táxis da cidade), o Dr.
Etevaldo, vendo o Modesto sentadinho num banco da sua antiga farmácia, “voou”
nele, mas a pergunta que ouviu deixou-o desconcertado e provocou uma gargalhada
geral:
- Tá
mais calmo? – e continuou contando uma história do Império Romano...
Crônica:
Jorge Marin
Foto: Comptonist,
disponível em http://comptonist.deviantart.com/art/Crazy-Old-Guy-250489?q=gallery%3Acomptonist+randomize%3A1&qo=0
.
Ele tinha uma cultura impressionante. Sabia que ele gostava muito de que alguém lesse a Bíblia para ele? Seu livro bíblico preferido era o livro de Jó. Ouvia com a maior atenção, refletia e comentava o texto.E isto era uma constante. Não consigo imaginar quantas vezes ele deve ter lido e ouvido a história de Jó.
ResponderExcluirSerá que estou errando de pessoa?Mas esta era incrível..
Mika, acredito que você acertou a pessoa na qual a história - um fato real - foi baseada. Naquele tempo, o "louco" era um sujeito que deveria ser colocado à margem da sociedade, e esse nosso conterrâneo provou que a doença mental não é excludente, pois ele próprio tinha o seu discurso, a sua crença e os seus conhecimentos.
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