quarta-feira, 1 de maio de 2013

QUEM É O LOUCO DE SÃO JOÃO?



Nós o chamávamos de Doutor Etevaldo, mas ele não era médico.  Na verdade, era farmacêutico aposentado e morava perto da minha casa, quase na subida da Santa Rita.  O fato é que o bom homem manipulava remédios homeopáticos e atendia a todos que necessitavam.  Ah, e de graça!

Dono de uma inteligência ímpar, normalmente demonstrava, além da bondade, uma paciência muito grande com as crianças, qualidade que, no entanto, desaparecia por completo quando alguma mãe dizia que o remédio “não adiantou nada” e, questionada se havia cumprido a rotina de pingar as gotinhas de tantas em tantas horas, reconhecia não ter executado corretamente a rotina.

Nesses momentos, o Doutor Etevaldo subia nas tamancas e dava uma boa esculhambada na reclamante.  Fora isso, era uma alma clara e leve, do tamanho do universo.

Mesmo o seu filho, que chamávamos de Modesto, raramente conseguia irritá-lo.  Não sabíamos o nome verdadeiro do Modesto; só que ele havia ficado louco de estudar demais, segundo diziam.  Se o doutor tinha os seus oitenta anos, o Modesto devia ter uns sessenta: andava barbudo, descalço e carregava um porrete que, vez por outra, usava para afugentar a molecada que corria atrás dele, implicando e xingando.

Naquele tempo, era comum levar as pessoas em surto psicótico para Barbacena, e deixá-las internadas no hospício.  E foi com muito pesar, mas com a certeza de que estava fazendo o correto que, num dos excessos do Modesto, o Doutor Etevaldo pegou o ônibus e levou o Modesto para a referida cidade.

Lá chegaram os dois e, como ambos achavam-se bem vestidos (foi um custo para calçar sapatos no Modesto), barbeados e apresentáveis, a pergunta do atendente foi inevitável: quem é o louco? 
- Ele! – apontou, imediatamente o Modesto, para o Doutor Etevaldo.  Este, assustado e humilhado, com a pergunta e a denúncia do Modesto, escolheu o pior lugar e a pior hora para dar um dos seus pitis.

Dias depois, estranhando a ausência do nosso doutor, algumas pessoas perguntaram ao Modesto (que havia retornado tranquilamente a São João) o paradeiro do sr. Etevaldo.  A resposta não poderia ser mais clara:
- Ah, ele estava muito nervoso; tive que internar!

Bom, resumo da história é que fizemos uma comitiva para ir resgatar o nosso benemérito lá no hospício em Barbacena.  Voltando de carro (fomos num dos dois únicos táxis da cidade), o Dr. Etevaldo, vendo o Modesto sentadinho num banco da sua antiga farmácia, “voou” nele, mas a pergunta que ouviu deixou-o desconcertado e provocou uma gargalhada geral:
- Tá mais calmo? – e continuou contando uma história do Império Romano...

Crônica: Jorge Marin

2 comentários:

  1. Ele tinha uma cultura impressionante. Sabia que ele gostava muito de que alguém lesse a Bíblia para ele? Seu livro bíblico preferido era o livro de Jó. Ouvia com a maior atenção, refletia e comentava o texto.E isto era uma constante. Não consigo imaginar quantas vezes ele deve ter lido e ouvido a história de Jó.
    Será que estou errando de pessoa?Mas esta era incrível..

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    1. Mika, acredito que você acertou a pessoa na qual a história - um fato real - foi baseada. Naquele tempo, o "louco" era um sujeito que deveria ser colocado à margem da sociedade, e esse nosso conterrâneo provou que a doença mental não é excludente, pois ele próprio tinha o seu discurso, a sua crença e os seus conhecimentos.

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