Frame do filme Amor Além da Vida
Corria o
glorioso ano de 1962 do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo; era assim que preenchíamos
as atas e a maioria dos documentos naquela época. Eu, deitado na cama grande dos meus pais,
lia, atentamente, um livro inesquecível de minha mãe: a Bíblia Ilustrada. Era uma obra fantástica em todos os sentidos,
e eu ficava extasiado com as pinturas de Rembrandt, Giotto, Masaccio, Carpaccio
e Rafael, entre outros. Mas, para meu
desconforto durante muitos anos, uma obra em particular chamou minha atenção, a
ponto de me deixar de cabelo (eu ainda tinha) em pé: era uma cena do Inferno que
ficou guardada em minha mente por muitos anos, com todos aqueles detalhes de
fogo, demônios e espetos.
Estranhamente,
o tempo se passou e, mesmo sem saber que pintura era aquela, permaneceu aquele
pavor de inferno que me acompanhou por muitos anos até que, conversando com um
amigo, ele ponderou que, na verdade, não era o registro visual que me
torturava, mas alguma coisa que ficou associada à cena. Lembrou que aquilo que afeta (traz afetos) às
pessoas é uma ocorrência ligada à paisagem, como ocorre aqui no blog, às
segundas-feiras, quando pessoas, às vezes distantes de São João, experienciam
emoções quando visualizam fotos de locais da cidade.
“O
inferno são os outros”, dizia Sartre, mas parece que a coisa vai além. Penso que o inferno é acreditar naquilo que
os outros falam. Desde o “você é bobo”
que ouvimos quando crianças até as famosas avaliações de desempenho
profissional, passando pelos diagnósticos nossos de cada dia.
Diagnósticos
têm se tornado uma constante, não só mais nos consultórios, mas na Internet,
nos bares, nas praças e em qualquer lugar onde as pessoas cismem de falar de
suas próprias vidas. E como as pessoas
têm falado de si ultimamente! De
repente, você está no açougue, comprando língua de boi, e aquela senhora
entende que deve contar como é desprezada pelos filhos e pelos netos. Eu, fã daqueles filmes antigos de espionagem,
só entro em elevador com uma cápsula de cianureto entre os dentes, apenas para
o caso de ficar preso lá dentro com uma dessas pessoas que insistem em contar a
própria vida e, praticamente, entrar em êxtase ao falar de sua miséria
particular. Os mendigos do meu bairro
agora já têm um script ensaiado: “olha, moço, não é dinheiro que eu quero não;
é só uma palavrinha”! E aí, voltamos ao
inferno: se não der atenção, será uma crueldade? Ou crueldade maior é aquela pessoa, que não
te conhece, compartilhar aquela miséria toda com você e, no final, lógico,
pedir alguma coisa?
Francamente,
não sei. Muitos dizem que o mundo está “do
jeito que está”, devido à falta de fé.
Eu acho é que a origem de todo sofrimento, resumindo, do inferno, é
acreditar no que os outros falam. O meu
inferno mesmo (porque cada um tem o seu) vem da crença de que, se eu não fosse
um bom menino, iria para aquele lugar.
Eu ouvi isso um bocado de vezes!
E isso
vale pra tudo, da TV às famosas discussões de relação, dos sermões aos discursos
políticos. Pois, se é verdade que a
doença te mata, quem faz sofrer, realmente, é o diagnóstico.
(Crônica:
Jorge Marin)
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