quarta-feira, 4 de abril de 2012

A PAIXÃO DA SEXTA-FEIRA

Foto de divulgação do Vam Design Center

Volto da feira com o carrinho cheio de batatas, para o inevitável bacalhau da sexta-feira e me vejo cara a cara com um indivíduo magrinho, meio assustado, com uma bolsa feminina nas mãos. Olho para o cara, do outro lado da rua, ele pega uma bicicleta, propositalmente deixada no chão, e pedala rapidamente rua abaixo, em direção à delegacia de São Mateus. Atravesso a rua e vem descendo, também assustada, uma senhora idosa, gritando e chorando, dizendo que havia sido assaltada pelo tal ciclista. Volto para esquina, não sei bem para quê, mas o sujeito, como se diz, “vazou”. A idosa vai em direção à delegacia.
Também idosa, minha vó cobria os espelhos numa Semana Santa dessas do começo dos anos 60, com um pano roxo. Com o mesmo tipo de pano, embrulhava todas as imagens de santos, e havia muitas, Santa Terezinha, Nossa Senhora da Piedade e um São Francisco de Assis colado, no qual eu tinha dado um tombo, e fiquei uma semana sem ouvir um programa de rádio que eu gostava.
Enquanto isso, de volta ao século XXI, na 1061 Budapest Király utca 26, na Hungria, pessoas ávidas se espremem na fila do Vam Design Center para assistir a uma exposição... de cadáveres: são corpos de pessoas mortas naturalmente (espero) conservadas por um processo chamado plastinação que disseca os cadáveres em universidades da China (até isso eles exportam) e, após um tratamento com substâncias químicas, expostas revelando suas intimidades, isto é, órgãos internos, músculos, vasos e artérias.
Até aí, nada de mais, pois a exposição já esteve no Brasil no ano passado, minha vó já morreu e seu corpo não está na exposição, mas o assaltante ainda ficou na minha cabeça. Fico pensando: saímos de um tempo, onde tudo era sagrado, para outro onde nada, mas absolutamente nada mesmo, é sagrado!
Adolescentes, rebeldes e irrequietos, íamos para um boteco em São João Nepomuceno, o único que abria na Sexta-Feira da Paixão, e esperávamos faltar um minuto para a meia-noite para pedir a primeira cerveja: alguém segurava o abridor na tampa e todos fazíamos a contagem regressiva até que o ponteiro cruzava o 12 e comemorávamos barulhentamente: vamos acabar com esse Judas! Pessoalmente, eu já achava aquilo meio desrespeitoso, mas, como eu sempre digo, a adolescência é a época certa de fazer coisas erradas.
Devo reconhecer que aquela pressão toda era aterradora: as casas pareciam cenários de filmes do Vincent Price, ninguém se barbeava e as mulheres não varriam as casas. Sonhávamos com um tempo em que o mundo fosse mais “evoluído” e não precisássemos nos submeter a rituais que achávamos bizarros.
Pois bem, acho que conseguimos: hoje, dizem os cientistas, o céu está vazio. As mulheres, que queríamos ver nuas nas playboys censuradas, levantam a pele do púbis e mostram o útero. E um moleque se julga no direito de espancar uma velha para roubar o real. Penso que é justamente aí, na ansiedade por obter o real, o real a todo custo, o real desnudo, o real empírico é que começamos a nos afastar do sagrado. E, agora, livres do sagrado, homens totalmente racionais, comandamos o planeta, mas, como na antiga série de tv, ficamos perdidos no espaço.
Acabamos com a Sexta-Feira da Paixão, mas, ao fazê-lo acabamos também com nossos objetos da paixão. Ficaram alguns objetos de consumo, importados da China, em meio ao lixo acumulado de papéis de ovos de páscoa, já comidos na véspera.

(Crônica: Jorge Marin)

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