Hoje, após
terminar meu dia na oficina, fui ao SESI buscar o histórico de meu filho para
alguns tramites de transferência.
Era noitinha e,
enquanto vinha tranquilamente fazendo meu caminho de volta, ao passar em frente
de nosso campo santo, lembrei-me de um fato que ocorreu certa vez comigo. Pra
ser sincero, não saberia dizer se foi uma feliz ou infeliz recordação. De
verdade mesmo, a única coisa que posso afirmar é que foi verdadeiro. Daí a dizer
que foi prazeroso é outra coisa. Talvez um pouquinho de cada.
Mas foi assim
que tudo começou:
Eu estava numa
tarde noite de segunda feira de 1972 vindo pra casa quando, ali naquele local
onde hoje é o calçadão, mais precisamente próximo onde existia um relógio
digital, encontrei com uma amiga que estava paquerando há quase um ano. Sabem
aquelas primeiras paixões de adolescência? Aí vocês já imaginam! Enquanto o
coração começou a bater mais forte e as mãos ficaram suadas e frias, fui de
imediato falar com ela. Só não poderia jamais imaginar que aquele nosso
encontro iria me colocar numa situação um tanto embaraçosa e delicada. Hoje,
diriam que paguei o maior Mico, mas, naquela época, como a turma pegava menos
pesado, tudo não passou mesmo de uma simples aventura, além é claro, da imagem
que deixei de um tremendo “cagão”!
Mas, voltando
ao encontro, ao vê-la sozinha descendo a Coronel José Dutra, aparentando
bastante pressa, fui de imediato perguntando qual o motivo de estar ela na rua naquele
horário. Era uma segunda-feira e, além
de ventar pra caramba, havia o prenúncio de uma forte chuva. Já naquele momento,
folhas e restos de papéis começaram a passar voando sobre nossas cabeças, enquanto
o céu, cada vez mais escuro, parecia querer avisar que seria um entardecer nada
romântico. Dessa forma, aproximando-me dela, fiquei imaginando, que, no mínimol,
iria me convidar para acompanhá-la até próximo a sua casa. Naquela época, ela
morava na Rua Comendador José Medina e, por algumas vezes, já havia me feito esse
pedido.
Então, um tanto
eufórico, já ia me preparando pra dizer sim, quando ela, simplesmente, vira pra
mim e diz:
- Serjão! Só
você pode me ajudar! Você caiu mesmo do céu! Mas tenho quase certeza de que vai
dizer não! - completou ela.
- Que foi? Diga
logo! É só pedir! – respondi, sem pestanejar.
Prosseguindo
então, foi logo dizendo:
- É que venho fazendo uma novena todas as
quintas-feiras indo até à igrejinha de Santa Rita rezar!
- Tudo bem, mas
hoje não é quinta. Estamos ainda na segunda!
- Pois é, aí
que entra sua ajuda! - disse ela.
- Como assim? -
um tanto apreensivo perguntei.
- É que todas
as segundas-feiras, juntamente com algumas amigas, tenho o costume de ir ao
cemitério fazer orações em intenção das almas! Pior de tudo é que hoje me
atrasei, minhas amigas não puderam vir e já está escurecendo!
Lasquei-me de
vez, disse pra mim mesmo, já imaginando o que ela iria me pedir. E não deu
outra:
- Você não iria
até lá me fazendo companhia?
- Claro que
sim! - imponentemente respondi.
Naquele exato momento,
a chuva chegou de vez trazendo muito vento e relâmpagos. Foi quando saímos
correndo e nos escondemos sob a marquise de uma loja. O tempo só ia piorando,
enquanto tentava, a todo custo, convencê-la a deixar aquela visita pra outro
dia. Justificava que aquele mau tempo estava fazendo escurecer muito depressa e,
com certeza, iríamos nos molhar.
Pura ilusão.
Não teve mesmo jeito e, após uma pequena estiagem, seguimos imediatamente rumo
ao cemitério. Segundo ela, suas amigas haviam dito que aquelas intenções não
poderiam ser quebradas um só dia. Lasquei-me de vez mesmo! Acho que vou mesmo
ter que encarar essa, pensei. E o arrependimento de tê-la encontrado já
começava facilmente a ser observado na minha sutil mudança de humor. Pra
completar minha infelicidade, o tempo, repentinamente, ainda deu uma boa
melhorada. Começamos a descer rapidinho pela Avenida Carlos Alves, enquanto eu tentava,
a todo custo, não perder a pose e muito menos as aparências. Tava difícil, mas
não impossível.
A noite chegou
e as luzes dos postes se acenderam. Um tanto ressabiados, nos aproximamos do
portão principal, que, por sinal, estava trancado.
Naquele momento,
mal conseguíamos enxergar dentro do cemitério, pois havia escurecido de vez. Como
única opção, além é claro a de tentar pular o muro frontal, somente nos restava
apelar para o portãozinho ao lado. E foi o que fizemos.
Não passava uma
santa alma nas proximidades. E se dentro não estivesse acontecendo o mesmo? Meu
Deus, o que que eu vim fazer aqui? - fiquei a pensar com meus botões. Aquela
rua que margeia nosso campo santo estava que era barro puro, pois ainda não
havia calçamento. Atola daqui, afunda dali, até que, em frente ao referido
portãozinho, empacamos. Após olharmos um para o outro, numa despistada agonia
telepática, ficávamos a esperar esperançosos que, a qualquer momento, um de nós
pudesse desistir. Pura ilusão! Poderia ter me apoiado naquele velho ditado onde
diz que devemos ter medo dos vivos e não dos mortos, mas, infelizmente, naquela
época, eu ainda não o conhecia.
E o tempo
começou a piorar novamente. Alguns relâmpagos, rasgando o céu, ficavam a nos
mostrar cada detalhe dos túmulos. Mesmo assim, juntos e de uma só vez, passamos
os dois espremidos naquele portãozinho. Não sei com que coragem, mas, quando
vimos, já estávamos lá dentro. Mal havíamos entrado e, de imediato, fui dando
as ordens:
- Faça logo o
que tem que fazer, que daqui não passo.
E o tempo
piorava a cada segundo. Ela então virou-se pra mim e disse:
- Aqui não
pode! Temos que ir lá em cima até o Cruzeiro!
- Lá, aonde? Cê
ta de brincadeira comigo? Não sei se você sabe, mas o Cruzeiro fica quase no
meio do cemitério! Tem certeza que não podemos ficar aqui mesmo?
- Serjão! Temos
que acender a vela no Cruzeiro! Rapidinho a gente chega lá! Vamos logo antes que
a chuva caia de vez. Se você não for, eu vou ter que ir sozinha! Já que viemos
até aqui, vamos fazer a coisa direito! – concluiu.
Aí, já pensando
na minha reputação, e vendo a possibilidade de ela subir sozinha, fui de
imediato respondendo:
- Claro que
vou! Mas... precisa ser mesmo hoje?
Então, após
respirarmos fundo, lá fomos nós. Subindo em passos largos, e carregando uma
vela na mão, começamos a nos aproximar. Alguns pingos começaram novamente a
cair, enquanto relâmpagos, trovões e uma forte ventania chegaram de vez. Se
existia algum poste no trajeto, deveriam estar todos eles com as lâmpadas
queimadas, pois um breu total seguia nos acompanhando. Tínhamos como única
referencia os relâmpagos, que vez ou outra clareavam nosso caminho.
Enfim,
conseguimos chegar até o Cruzeiro. Silêncio total. A não ser o barulho do vento
e dos trovões, não se escutava absolutamente mais nada.
- Vamo logo,
vamo logo! - pedi que fosse o mais breve possível.
Enquanto ela
rezava, eu ficava de olho no clarão dos relâmpagos, tentando monitorar cada centímetro
ao nosso redor. De antemão, já havíamos combinado que qualquer coisa diferente
que se mexesse ou fizesse barulho, eu despencaria de lá num pé só. Nossa
adrenalina estava tão aguçada, que um simples vagalume que piscasse ao nosso
redor, ou mesmo o piar de uma coruja qualquer, iria deflagrar uma correria sem
precedentes.
Mas tudo foi
transcorrendo dentro do possível até que, quando íamos pegar a vela pra
acendê-la, descobrimos que havíamos nos esquecido dos fósforos.
- Vai ficar é
apagada mesmo! - pensei
Aí a coisa danou
de vez. Foi quando, sob um forte clarão de relâmpago, uma voz pausada e grossa
sussurrou próximo da gente:
- Se ôceis
precisarem de fósfi, eu tem!
Foi quando, ao
olhar pro lado, algo parecendo estar carregando uma foice já estava bem próximo
de nós. Minha amiga, após um grito de horror, me largou pra trás e, pelo mesmo
caminho que veio, desceu apavorada. Busquei uma tangente e, correndo,
tropeçando entre túmulos, desci em disparada, procurando a todo custo chegar à
saída. Ainda no meio do caminho, outro susto. Fui surpreendido ao encontrar com
uma mulher que, parecendo que ia fazer o mesmo, e, sem saber o que estava
acontecendo, jogou um monte de velas pro alto e saiu correndo atrás de mim
gritando.
Chegamos os
três quase simultaneamente ao portão. Saímos mais do que depressa para a rua,
enquanto mal conseguíamos falar. Já do lado de fora, ficávamos olhando pra
dentro do cemitério como se não acreditássemos no que acabara de acontecer. Só
pode ser fruto de nossa imaginação! Assim falávamos um pro outro. Meu queixo
tremia. Minhas pernas também.
No fundo no
fundo, tínhamos consciência de que tudo aquilo teria acontecido em função de
uma simples histeria coletiva decorrente de muita adrenalina acumulada. Ou não!
Quando já nos preparávamos para virmos embora, eis que surge, em carne e osso,
no portão principal, nossa suposta alma penada. Acredite quem quiser, mas era
nada mais nada menos que um humilde senhor, por sinal muito simpático,
funcionário do cemitério, que, naquele momento, estava terminando o serviço. Saído
ele com uma enxada nas costas, ainda suja de cal, veio ao nosso encontro rindo
sem parar. Ironicamente, perguntou se havíamos encontrado fósforo e o porquê de
termos corrido tanto.
Também rimos
muito e, já bem mais calmos e relaxados, não acreditamos no que nossa mente foi
capaz de criar, e, após pegarmos um fósforo emprestado com um vizinho,
resolvemos tentar mais uma vez. Mal acabáramos de entrar, e um gato pula
repentinamente de cima de uma casinha para bem próximo de nós. Numa barulhada
danada, por muito pouco, quase cai em cima da gente! Nosso susto foi tão
grande, que dali mesmo resolvemos desistir de vez. Assustados, e sentindo na
pele o que a mente foi capaz de produzir, após fazermos as orações ali mesmo,
fomos rapidinho caçando o rumo de casa, carregando conosco a agradável sensação
do dever cumprido.
E a chuva parou
de vez. O céu se abriu em estrelas, e uma enorme lua cheia nos fez companhia na
volta.
Crônica: Serjão
Missiaggia
Foto : disponível em Dreamstime.com
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