quarta-feira, 19 de outubro de 2016

ASSOMBROSA PAIXÃO


Hoje, após terminar meu dia na oficina, fui ao SESI buscar o histórico de meu filho para alguns tramites de transferência.  

Era noitinha e, enquanto vinha tranquilamente fazendo meu caminho de volta, ao passar em frente de nosso campo santo, lembrei-me de um fato que ocorreu certa vez comigo. Pra ser sincero, não saberia dizer se foi uma feliz ou infeliz recordação. De verdade mesmo, a única coisa que posso afirmar é que foi verdadeiro. Daí a dizer que foi prazeroso é outra coisa. Talvez um pouquinho de cada.

Mas foi assim que tudo começou:
Eu estava numa tarde noite de segunda feira de 1972 vindo pra casa quando, ali naquele local onde hoje é o calçadão, mais precisamente próximo onde existia um relógio digital, encontrei com uma amiga que estava paquerando há quase um ano. Sabem aquelas primeiras paixões de adolescência? Aí vocês já imaginam! Enquanto o coração começou a bater mais forte e as mãos ficaram suadas e frias, fui de imediato falar com ela. Só não poderia jamais imaginar que aquele nosso encontro iria me colocar numa situação um tanto embaraçosa e delicada. Hoje, diriam que paguei o maior Mico, mas, naquela época, como a turma pegava menos pesado, tudo não passou mesmo de uma simples aventura, além é claro, da imagem que deixei de um tremendo “cagão”!

Mas, voltando ao encontro, ao vê-la sozinha descendo a Coronel José Dutra, aparentando bastante pressa, fui de imediato perguntando qual o motivo de estar ela na rua naquele horário.  Era uma segunda-feira e, além de ventar pra caramba, havia o prenúncio de uma forte chuva. Já naquele momento, folhas e restos de papéis começaram a passar voando sobre nossas cabeças, enquanto o céu, cada vez mais escuro, parecia querer avisar que seria um entardecer nada romântico. Dessa forma, aproximando-me dela, fiquei imaginando, que, no mínimol, iria me convidar para acompanhá-la até próximo a sua casa. Naquela época, ela morava na Rua Comendador José Medina e,  por algumas vezes, já havia me feito esse pedido.

Então, um tanto eufórico, já ia me preparando pra dizer sim, quando ela, simplesmente, vira pra mim e diz:
- Serjão! Só você pode me ajudar! Você caiu mesmo do céu! Mas tenho quase certeza de que vai dizer não! - completou ela.
- Que foi? Diga logo! É só pedir! – respondi, sem pestanejar.
Prosseguindo então, foi logo dizendo:
 - É que venho fazendo uma novena todas as quintas-feiras indo até à igrejinha de Santa Rita rezar!
- Tudo bem, mas hoje não é quinta. Estamos ainda na segunda!
- Pois é, aí que entra sua ajuda! - disse ela.
- Como assim? - um tanto apreensivo perguntei.
- É que todas as segundas-feiras, juntamente com algumas amigas, tenho o costume de ir ao cemitério fazer orações em intenção das almas! Pior de tudo é que hoje me atrasei, minhas amigas não puderam vir e já está escurecendo!
Lasquei-me de vez, disse pra mim mesmo, já imaginando o que ela iria me pedir. E não deu outra:
- Você não iria até lá me fazendo companhia?
- Claro que sim! - imponentemente respondi.

Naquele exato momento, a chuva chegou de vez trazendo muito vento e relâmpagos. Foi quando saímos correndo e nos escondemos sob a marquise de uma loja. O tempo só ia piorando, enquanto tentava, a todo custo, convencê-la a deixar aquela visita pra outro dia. Justificava que aquele mau tempo estava fazendo escurecer muito depressa e, com certeza, iríamos nos molhar.

Pura ilusão. Não teve mesmo jeito e, após uma pequena estiagem, seguimos imediatamente rumo ao cemitério. Segundo ela, suas amigas haviam dito que aquelas intenções não poderiam ser quebradas um só dia. Lasquei-me de vez mesmo! Acho que vou mesmo ter que encarar essa, pensei. E o arrependimento de tê-la encontrado já começava facilmente a ser observado na minha sutil mudança de humor. Pra completar minha infelicidade, o tempo, repentinamente, ainda deu uma boa melhorada. Começamos a descer rapidinho pela Avenida Carlos Alves, enquanto eu tentava, a todo custo, não perder a pose e muito menos as aparências. Tava difícil, mas não impossível.

A noite chegou e as luzes dos postes se acenderam. Um tanto ressabiados, nos aproximamos do portão principal, que, por sinal, estava trancado.
Naquele momento, mal conseguíamos enxergar dentro do cemitério, pois havia escurecido de vez. Como única opção, além é claro a de tentar pular o muro frontal, somente nos restava apelar para o portãozinho ao lado. E foi o que fizemos.

Não passava uma santa alma nas proximidades. E se dentro não estivesse acontecendo o mesmo? Meu Deus, o que que eu vim fazer aqui? - fiquei a pensar com meus botões. Aquela rua que margeia nosso campo santo estava que era barro puro, pois ainda não havia calçamento. Atola daqui, afunda dali, até que, em frente ao referido portãozinho, empacamos. Após olharmos um para o outro, numa despistada agonia telepática, ficávamos a esperar esperançosos que, a qualquer momento, um de nós pudesse desistir. Pura ilusão! Poderia ter me apoiado naquele velho ditado onde diz que devemos ter medo dos vivos e não dos mortos, mas, infelizmente, naquela época, eu ainda não o conhecia.

E o tempo começou a piorar novamente. Alguns relâmpagos, rasgando o céu, ficavam a nos mostrar cada detalhe dos túmulos. Mesmo assim, juntos e de uma só vez, passamos os dois espremidos naquele portãozinho. Não sei com que coragem, mas, quando vimos, já estávamos lá dentro. Mal havíamos entrado e, de imediato, fui dando as ordens:
- Faça logo o que tem que fazer, que daqui não passo.

E o tempo piorava a cada segundo. Ela então virou-se pra mim e disse:
- Aqui não pode! Temos que ir lá em cima até o Cruzeiro!
- Lá, aonde? Cê ta de brincadeira comigo? Não sei se você sabe, mas o Cruzeiro fica quase no meio do cemitério! Tem certeza que não podemos ficar aqui mesmo?
- Serjão! Temos que acender a vela no Cruzeiro! Rapidinho a gente chega lá! Vamos logo antes que a chuva caia de vez. Se você não for, eu vou ter que ir sozinha! Já que viemos até aqui, vamos fazer a coisa direito! – concluiu.
Aí, já pensando na minha reputação, e vendo a possibilidade de ela subir sozinha, fui de imediato respondendo:
- Claro que vou! Mas... precisa ser mesmo hoje?

Então, após respirarmos fundo, lá fomos nós. Subindo em passos largos, e carregando uma vela na mão, começamos a nos aproximar. Alguns pingos começaram novamente a cair, enquanto relâmpagos, trovões e uma forte ventania chegaram de vez. Se existia algum poste no trajeto, deveriam estar todos eles com as lâmpadas queimadas, pois um breu total seguia nos acompanhando. Tínhamos como única referencia os relâmpagos, que vez ou outra clareavam nosso caminho. 

Enfim, conseguimos chegar até o Cruzeiro. Silêncio total. A não ser o barulho do vento e dos trovões, não se escutava absolutamente mais nada.
- Vamo logo, vamo logo! - pedi que fosse o mais breve possível.
Enquanto ela rezava, eu ficava de olho no clarão dos relâmpagos, tentando monitorar cada centímetro ao nosso redor. De antemão, já havíamos combinado que qualquer coisa diferente que se mexesse ou fizesse barulho, eu despencaria de lá num pé só. Nossa adrenalina estava tão aguçada, que um simples vagalume que piscasse ao nosso redor, ou mesmo o piar de uma coruja qualquer, iria deflagrar uma correria sem precedentes.

Mas tudo foi transcorrendo dentro do possível até que, quando íamos pegar a vela pra acendê-la, descobrimos que havíamos nos esquecido dos fósforos.
- Vai ficar é apagada mesmo! - pensei
Aí a coisa danou de vez. Foi quando, sob um forte clarão de relâmpago, uma voz pausada e grossa sussurrou próximo da gente:
- Se ôceis precisarem de fósfi, eu tem!
Foi quando, ao olhar pro lado, algo parecendo estar carregando uma foice já estava bem próximo de nós. Minha amiga, após um grito de horror, me largou pra trás e, pelo mesmo caminho que veio, desceu apavorada. Busquei uma tangente e, correndo, tropeçando entre túmulos, desci em disparada, procurando a todo custo chegar à saída. Ainda no meio do caminho, outro susto. Fui surpreendido ao encontrar com uma mulher que, parecendo que ia fazer o mesmo, e, sem saber o que estava acontecendo, jogou um monte de velas pro alto e saiu correndo atrás de mim gritando.

Chegamos os três quase simultaneamente ao portão. Saímos mais do que depressa para a rua, enquanto mal conseguíamos falar. Já do lado de fora, ficávamos olhando pra dentro do cemitério como se não acreditássemos no que acabara de acontecer. Só pode ser fruto de nossa imaginação! Assim falávamos um pro outro. Meu queixo tremia. Minhas pernas também.

No fundo no fundo, tínhamos consciência de que tudo aquilo teria acontecido em função de uma simples histeria coletiva decorrente de muita adrenalina acumulada. Ou não! Quando já nos preparávamos para virmos embora, eis que surge, em carne e osso, no portão principal, nossa suposta alma penada. Acredite quem quiser, mas era nada mais nada menos que um humilde senhor, por sinal muito simpático, funcionário do cemitério, que, naquele momento, estava terminando o serviço. Saído ele com uma enxada nas costas, ainda suja de cal, veio ao nosso encontro rindo sem parar. Ironicamente, perguntou se havíamos encontrado fósforo e o porquê de termos corrido tanto.

Também rimos muito e, já bem mais calmos e relaxados, não acreditamos no que nossa mente foi capaz de criar, e, após pegarmos um fósforo emprestado com um vizinho, resolvemos tentar mais uma vez. Mal acabáramos de entrar, e um gato pula repentinamente de cima de uma casinha para bem próximo de nós. Numa barulhada danada, por muito pouco, quase cai em cima da gente! Nosso susto foi tão grande, que dali mesmo resolvemos desistir de vez. Assustados, e sentindo na pele o que a mente foi capaz de produzir, após fazermos as orações ali mesmo, fomos rapidinho caçando o rumo de casa, carregando conosco a agradável sensação do dever cumprido.

E a chuva parou de vez. O céu se abriu em estrelas, e uma enorme lua cheia nos fez companhia na volta.

Crônica: Serjão Missiaggia
Foto     : disponível em Dreamstime.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário

BRIGADU, GENTE!

BRIGADU, GENTE!
VOLTEM SEMPRE, ESTAMOS ESPERANDO... NO MURINHO DO ADIL