De
início, quero pedir desculpas por não saber ao certo como designar o objeto da
minha crônica, se “o” bicha ou “a” bicha. Acho até que não deveria usar o termo
“bicha”, antes que um bando de politicamente corretos comece a me apedrejar.
Mas, invoco o Estatuto do Idoso, para garantir minha licença literária.
A coisa
aconteceu assim: eu tinha ido com minha mãe numa daquelas lojas de São João onde de
tudo se vendia, para comprar um cinzeiro. Como eu havia quebrado o cinzeiro
preferido do meu pai, caberia a mim, na sabedoria dos meus seis anos, escolher
um novo cinzeiro bem bonito.
Não sei
bem por quê (e, por favor, não vejam nisto nenhuma correlação com os detalhes
da história), escolhi um cinzeiro com o escudo do Fluminense. Minha mãe relutou
um pouco, pois meu pai era vascaíno. Até que uma voz grossa se fez ouvir:
- Esse é
lindíssimo, minha senhora – e, exalando um perfume suave, veio até nós um dos caixeiros
da loja (era assim que os chamávamos) – mas minha mãe me abraçou, o que era
raro, e disse que o Menezes já estava nos despachando (era como nos referíamos,
na época, a atender).
Um dos
caixeiros mais antigos do local, o Menezes, na verdade, estava meio que
cochilando encostado ao balcão e acho que foi uma das poucas vezes que vi minha
mãe mentir. Os caixeiros, normalmente, se vestiam da mesma forma: camisas de
brim grosso, calças puídas e sapatos mal engraxados. Mas aquele moço de voz
grossa, o Antônio, era diferente: usava camisa Volta ao Mundo impecavelmente
branca e calças bem apertadas ao corpo.
Nas
outras visitas à loja, percebi que minha mãe evitava comprar com o tal moço,
cujo cheiro continuava bem diferente do desodorante Mum, ou do Leite de Rosas,
que eu conhecia bem. Eram tempos bem obscuros, mas, depois de muita
insistência, foram me dizendo que ele era “mulherzinha”, até que, já no Ginásio
do Sôbi, um colega me explicou que o Antônio era bicha, ou seja, transava com
outros homens. Eu nem sei se o verbo que ele usou foi “transar”.
Aquilo me
causou uma confusão imensa. Havia aprendido, alguns anos antes, com o padre
Oswaldo, que fazer sexo com a gente mesmo era pecado, com mulher sem casar era
pecado mortal. Agora, com homem, acho que dava inferno direto. E de cabeça pra
baixo!
O tempo
passou. O moço, que todo conheciam por Tony, saiu da loja, participou de várias
atividades artísticas, culturais e, quando deixavam, religiosas. Digo isso
porque era sabido, na época, que o demônio costumava se manifestar nos
efeminados, nos espíritas e até numa mulher que morava ali perto do pontilhão e
benzia de vento virado e quebranto.
Na última
vez que fui a São João vi o Antônio na rua, feliz, aposentado, cheio de amigos
ao redor, numa mesa do Bar Central. Não parecia muito diferente de mim, ou do Padre Oswaldo, ou de
qualquer outra pessoa normal, seja lá o que for isto.
Crônica:
Jorge Marin
Foto : disponível em http://cinemaitalianorao.blogspot.com.br/2015/07/o-marcello-de-mastroianni.html
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