sexta-feira, 8 de julho de 2016

A BICHA


De início, quero pedir desculpas por não saber ao certo como designar o objeto da minha crônica, se “o” bicha ou “a” bicha. Acho até que não deveria usar o termo “bicha”, antes que um bando de politicamente corretos comece a me apedrejar. Mas, invoco o Estatuto do Idoso, para garantir minha licença literária.

A coisa aconteceu assim: eu tinha ido com minha mãe numa daquelas lojas de São João onde de tudo se vendia, para comprar um cinzeiro. Como eu havia quebrado o cinzeiro preferido do meu pai, caberia a mim, na sabedoria dos meus seis anos, escolher um novo cinzeiro bem bonito.

Não sei bem por quê (e, por favor, não vejam nisto nenhuma correlação com os detalhes da história), escolhi um cinzeiro com o escudo do Fluminense. Minha mãe relutou um pouco, pois meu pai era vascaíno. Até que uma voz grossa se fez ouvir:
- Esse é lindíssimo, minha senhora – e, exalando um perfume suave, veio até nós um dos caixeiros da loja (era assim que os chamávamos) – mas minha mãe me abraçou, o que era raro, e disse que o Menezes já estava nos despachando (era como nos referíamos, na época, a atender).

Um dos caixeiros mais antigos do local, o Menezes, na verdade, estava meio que cochilando encostado ao balcão e acho que foi uma das poucas vezes que vi minha mãe mentir. Os caixeiros, normalmente, se vestiam da mesma forma: camisas de brim grosso, calças puídas e sapatos mal engraxados. Mas aquele moço de voz grossa, o Antônio, era diferente: usava camisa Volta ao Mundo impecavelmente branca e calças bem apertadas ao corpo.

Nas outras visitas à loja, percebi que minha mãe evitava comprar com o tal moço, cujo cheiro continuava bem diferente do desodorante Mum, ou do Leite de Rosas, que eu conhecia bem. Eram tempos bem obscuros, mas, depois de muita insistência, foram me dizendo que ele era “mulherzinha”, até que, já no Ginásio do Sôbi, um colega me explicou que o Antônio era bicha, ou seja, transava com outros homens. Eu nem sei se o verbo que ele usou foi “transar”.

Aquilo me causou uma confusão imensa. Havia aprendido, alguns anos antes, com o padre Oswaldo, que fazer sexo com a gente mesmo era pecado, com mulher sem casar era pecado mortal. Agora, com homem, acho que dava inferno direto. E de cabeça pra baixo!

O tempo passou. O moço, que todo conheciam por Tony, saiu da loja, participou de várias atividades artísticas, culturais e, quando deixavam, religiosas. Digo isso porque era sabido, na época, que o demônio costumava se manifestar nos efeminados, nos espíritas e até numa mulher que morava ali perto do pontilhão e benzia de vento virado e quebranto.

Na última vez que fui a São João vi o Antônio na rua, feliz, aposentado, cheio de amigos ao redor, numa mesa do Bar Central. Não parecia muito diferente de mim, ou do Padre Oswaldo, ou de qualquer outra pessoa normal, seja lá o que for isto.

Crônica: Jorge Marin

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