Muitos
leitores do Blog, principalmente quando o Serjão publica alguma matéria sobre o
“nosso” passado, têm a ilusão (porque é um tipo de ilusão) de que, nos idos de
1970 e poucos, vivíamos num paraíso terrestre: São João Nepomuceno era uma
cidade limpa, ordeira e as pessoas, todas, eram absolutamente honestas e
trabalhadoras.
Grande
parte dessa percepção se deve ao fato de que nós, na época jovens, estávamos
tão focados em nossas aventuras, romances e descobertas, que nem percebíamos as
coisas “feias” que nos rodeavam.
Uma das
minhas ilusões favoritas é acreditar que, na Sexta-Feira da Paixão, todos vivIam
uma atmosfera de respeito, contrição e retiro. Mas, a realidade não é bem essa,
e é isso que vou tentar mostrar ao relatar uma das missões quase impossíveis
que me foram delegadas pelo então Sargento José Carlos Matildes dos Reis no
nosso glorioso Tiro de Guerra 04-151.
Corria o
ano de 1975 e, para vocês terem uma ideia desta distância temporal, Bill Gates
acabara de fundar a Microsoft, e a gente não tinha a mínima ideia do que era
aquilo e nem para que servia. O Sargento me chamou na sua sala, impecavelmente
faxinada por nós, e disse:
-
Dezoito, pegue os seus homens e distribua as luvas brancas, pois vocês irão
participar da Procissão do Enterro, junto com o time do Dois! Percebam que é
uma grande honra pra nós, e não me decepcionem!
Esse “não
me decepcionem” me preocupou muito, pois eu conhecia muito bem os “meus
homens”, um bando de moleques bagunceiros que, quando fazíamos a faxina,
“surfavam” pelos corredores usando justamente aquela cadeira na qual o sargento
estava sentado.
Enfim, o
grande dia chegou e lá estávamos, com nossas fardas de gala, para carregar o
esquife do Senhor Morto.
- É
pesado? – perguntou o Trinta e Dois. Eu não tinha a menor ideia, mas, pensando
apenas na imagem, afirmei que era só uma imagem de gesso e deveria ser levinha.
E, como éramos os mais baixinhos, me ofereci para dar o exemplo e carregar,
junto com ele e outros dois nanicos, o tal caixão.
Meus
amigos, aí é que a coisa ficou preta. Tá certo, a imagem não é muito pesada,
mas o esquife... não sei se já repararam na procissão, mas é um ataúde enorme,
alto e de madeira maciça. Aquele trem, sozinho, devia pesar uns cinquenta
quilos! Aí pedi a ajuda do outro cabo, o Dois, mas ele estava ocupado anotando
o nome de quem estava conversando. Os atiradores protestavam dizendo que
estavam rezando, mas o Dois continuava a sua vigia, enquanto eu quase morria.
Pensava: daqui a pouco vamos ter o Senhor Morto e o cabo morto!
Finda a
missão, depois de percorrermos todas as ruas da Garbosa (para nós, foi como se
tivéssemos ido a Bicas e voltado), fomos convidados pelo chefe do comitê
organizador da Semana Santa, o saudoso Milton de Jesus, a aproveitar uma
surpresa que havia sido reservada apenas para nós, bravos atiradores do TG. O
Treze comentou:
- Oba,
deve ser pão com mortadela. Adoro! – mas não era bem essa a nossa surpresa.
Todo
feliz, e com um brilho de fé nos olhos, o Milton nos revelou:
- Vocês
terão o privilégio de serem os primeiros a beijar o pé do Cristo!
Crônica:
Jorge Marin
Foto : Marcus Martins, disponível em http://grupopitomba.blogspot.com.br/2015_04_01_archive.html
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