sexta-feira, 18 de abril de 2014

SÃO JOÃO NEPOMUCENO À MODA DE GARCIA MÁRQUEZ


Muitos anos depois, diante do trânsito inexorável do século XXI, o mestre de cerimônias do Conjunto Pitomba havia de recordar aquela tarde remota em que seus pais o levaram para escapar da enchente. São João era na época uma vila com umas duas centenas de casas baixas com telhas de barro, construídas à margem de uma estrada de ferro que se precipitava entre o verdor dos pastos até o clangor dos ferros com o pontilhão quase em frente à rua onde o ex-delegado agora aposentado criava galinhas. O mundo era tão recente que muitos lugares da cidade careciam de nome e para mencioná-los se precisava apontar com o dedo e inventar. Todos os anos, pelo mês de março, alguns ciganos esfarrapados plantavam suas tendas no campo vazio do Mangueira e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, davam a conhecer as novas pitonisas.

Matilde não devia ter mais do que vinte anos. A pele curtida pelo sol das viagens acrescentava-lhe outros tantos, mas os brincos e um batom da cor de açafrão realçavam-lhe o mistério e uma inesperada aliança com poderes desconhecidos. Um cigano corpulento, com a barba por fazer e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Aristóteles, falou de forma rude sobre a mulher misteriosa. Décima segunda encarnação das sacerdotisas do templo de Apolo, era capaz, segundo seu arauto, de observar nas linhas das mãos o futuro possível e o desejado, enquanto falava pelas bocas de suas antecessoras, dos passados vividos e também dos mal feitos, dos desfeitos e dos escondidos por baixo das dobras da memória lavada pela água benta.

O menino deitado na grama era o mesmo homem parado agora há pouco no cruzamento da Avenida Rio Branco com a Independência. Matilde, de roupas diáfanas e de um colorido roxo como aqueles panos da Semana Santa, levantou-se e incorporou, de uma só vez uma dezena de espíritos mágicos. “Vamos, menino. Ciganos roubam crianças e ferro pra fazer tacho”, dizia a madrinha. O sinal enfim abre, mas vem uma ambulância em disparado alvoroço. Lá atrás, na ponte de madeira, ouvia-se o tropel da charrete: era o Dr. Hercílio Ferreira, o Bolote.

Crônica: Jorge Marin
Foto: Diego Robayo, disponível em https://www.flickr.com/photos/diegorobayo/5391282502/in/set-72157625912707190/

2 comentários:

  1. Amigo Jorge, adorei a crônica escrita no estilo Garcia Márquez. A parte dos ciganos acampados no campo do Mangueira me fez lembrar uma ciganinha que conheci lá, que ficou minha amiga, apesar da reprovação de seus pais.Isso foi há muitos anos,mas ficou gravado na minha memória...

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    1. Obrigado, Nilson, o campo do Mangueira sempre traz grandes recordações. Tenho vontade de escrever sobre o Circo do Risadinha, você lembra?

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