quarta-feira, 29 de novembro de 2017

TIÃO E SEU MISTÉRIO


Final da década de setenta, e lá surgia mais uma vez o enigmático Sebastião Cabideiro subindo uma das ruas centrais da cidade. Caminhando a passos largos e andar cadenciado, vinha ele seguindo tranquilamente com sua inseparável sandália franciscana, carregando na mão um monte de números escritos num pedaço papel, no intuito de, o mais breve possível, chegar a um “corretor zoológico”.

Tião, como gostava de ser chamado, era uma pessoa interessantíssima, e porque não, bastante emblemática.  Até então nunca havia tido qualquer tipo de contato com ele exceto pelo campo visual. Por sinal, a cada passada em frente a minha casa, mais curioso e intrigado eu ficava em conhecê-lo.
Seu apelido por si (só pode ser apelido!) já me bastava. Por que Tião Cabideiro? Ou seria sobrenome mesmo? O que sei, com certeza, é que esse cidadão teria muito mais mistério do que nossa vã filosofia poderia imaginar.

Preciso conhecer melhor esta figura, pensei. Mas, enquanto esse momento não chegasse (se é que um dia chegaria), procurei ficar de pescoço bem esticado em seus trejeitos. Quem sabe poderei pelo menos descobrir a origem de seu apelido?

De antemão, fiquei sabendo que havia sido um exímio pedreiro, e que, já aposentado, teria tido somente esta profissão ao longo da vida. (E lá se foi por água abaixo a mais provável das possibilidades, ou seja, de que teria sido no passado um fabricante de CABIDES).

Entre uma observação e outra, uma situação curiosíssima e até certo ponto enigmática, é o fato de que Tião somente andava com suas vestes superiores - camisas, camisetas e afins - jogadas sobre o ombro. (Estava aí minha primeira pista e, possivelmente, a mais intrigante delas). Faça chuva, faça sol, frio ou calor, e lá vinha ele com a camiseta ou camisa, dependendo do clima, SEMPRE dependurada sobre o ombro. E pasmem... Impecavelmente passada, engomada, dobrada e religiosamente posicionada do lado ESQUERDO do ombro. Sei apenas que jamais o havia visto vestido do umbigo pra cima, ou mesmo carregando seu referido “adorno” do lado direito do ombro.

E assim foi, até que, num belo dia, eis que, inesperadamente, e para minha surpresa, o destino quis que nos conhecêssemos em decorrência de um aparelho que levou na oficina para reparos. Um tanto acanhado, chegou de mansinho trazendo consigo, além de uma velha furadeira enguiçada, uma camiseta vermelha passada e engomanda, jogada sobre o ombro ESQUERDO.
Descobri, a partir daquele momento, ser ele uma pessoa humilde, honesta, trabalhadora, mas, sem dúvida alguma, ainda bastante intrigante. E a danada da camiseta parecia colada em seu ombro, tal a habilidade que ele tinha em se locomover ou mesmo fazer qualquer tipo movimento brusco. A naturalidade era tamanha, que parecia se esquecer de que ela estaria ali. Fazia lembrar a habilidade das antigas lavadeiras, que caminhavam com suas imensas trouxas de roupas equilibradas na cabeça e sem qualquer tipo de incidente.

Mas, eu ainda precisava de tempo e, principalmente, intimidade para poder questioná-lo ou mesmo conhecê-lo melhor. Minha curiosidade aumentava mais e mais, enquanto um monte de possíveis explicações e teorias descabidas começavam a passear por minha imaginação. Qual seria a explicação pra que uma pessoa, diante das variações climáticas, viesse a usar roupas apenas da metade do corpo pra baixo, deixando a outra metade apenas com suas vestes penduradas sobre o ombro, o esquerdo?

Seria hipersensibilidade a tecidos? Até então, eu nunca havia visto alergia somente do umbigo pra cima, sendo assim, fui descartando imediatamente esta possibilidade. Trauma de infância? Algo como ter sido forçado pela mãe a vestir a camisa pra ir onde não queria, ou seja: ir à escola (eu mesmo quando criança, não gostava muito de ir ao colégio), ou mesmo fazer mandados na rua?

Sudorese excessiva? Conheço varias pessoas, que devido ao contato das axilas com determinado tecido, passam a exalar um forte odor. Mas, confesso não parecer que seria o caso do Sr TIÃO CABIDEIRO. Seria então uma exacerbada vontade de mostrar o tórax? Na idade do Sr Tião, pouco provável e, sinceramente, não abriria um leque para EXIBICIONISMO.

Preguiça no vestir, ou nada de tudo isso? Pra ser sincero, acho mesmo se tratar de mania, TOC, ou mesmo um simples guardião de certo objeto imaginário de desejo ou decoração.

Desta forma, entre dúvidas e suposições, o tempo foi passando até que, depois de certo período, aonde uma amizade sincera veio de fato começar acontecer, vi que teria chegado o grande momento. Senti que haveria liberdade suficiente para questioná-lo e que, diante de uma boa prosa, poria fim em minha quase centenária abelhudice.

E assim foi, quando, numa bela tarde de domingo, nos deparamos na rua.
Não haveria oportunidade melhor, pensei. Senti, naquele momento, que alguns segundos, estariam me separando da minha já CRÔNICA curiosidade (sem trocadilhos). Enquanto o papo fruía serenamente, quando íamos falando entre umas e outras coisas sobre futebol, trânsito, poluição sonora e até religião, que, repentinamente, para seu espanto, diante de um surto meio desesperador, fui sapecando aquela pergunta que estaria na ponta da língua e ensaiado há quase dois anos:
- E aí Tião! Não querendo fugir muito do assunto, vou fazer uso de nossa amizade e tomar a liberdade de perguntar ao amigo o motivo de somente dependurar a camisa no OMBRO e não vesti-la? - (Deixei o detalhe do ombro ESQUERDO, para outra oportunidade). Continuando, disse a ele que seria uma curiosidade coletiva, e que eu o admirava muito, principalmente em função desse seu comportamento, a meu ver, um tanto diferente.

Após uma bela risada foi de imediato me dizendo:
- Serginho! Vou ser sincero contigo! Você não foi a primeira pessoa a me fazer esta pergunta! O negocio é o seguinte - prosseguiu ele - Ha mais ou menos vinte anos, quando vinha descendo de bicicleta o Caxangá, e já ia passando próximo à antiga Fábrica de Ferraduras, quebrou o garfo de minha bicicleta e tomei um tombo feio. Por sorte não bati com a cabeça, mas fui de cotovelo com toda força no chão.

Mostrando-me uma cicatriz que ficou no local devido à cirurgia, continuou dizendo:
- Recuperei-me bem, mas uma rigidez enjoada ficou no cotovelo, devido ao trauma e minha preguiça em fazer fisioterapia. Pra vestir uma camisa então, meu amigo, é sempre um sufoco. Ficou mais prático e confortável simplesmente jogá-la no ombro.

Continuando disse:
- CABIDEIRO foi um apelido que recebi de meu irmão, e acho desnecessário dizer em que se inspirou. Pena que o CABIDE tenha surgido em circunstância de um incidente lamentável, concluiu ele. - Rimos muito e cada um foi pro seu lado.

Esta foi à história do Tião Cabideiro. Aquele brasileiro que gostava de carregar sua camiseta dependurada no ombro. No ombro ESQUERDO!

Crônica e foto: Serjão Missiaggia

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