Final da
década de setenta, e lá surgia mais uma vez o enigmático Sebastião Cabideiro
subindo uma das ruas centrais da cidade. Caminhando a passos largos e andar
cadenciado, vinha ele seguindo tranquilamente com sua inseparável sandália
franciscana, carregando na mão um monte de números escritos num pedaço papel,
no intuito de, o mais breve possível, chegar a um “corretor zoológico”.
Tião, como
gostava de ser chamado, era uma pessoa interessantíssima, e porque não, bastante
emblemática. Até então nunca havia tido
qualquer tipo de contato com ele exceto pelo campo visual. Por sinal, a cada
passada em frente a minha casa, mais curioso e intrigado eu ficava em
conhecê-lo.
Seu
apelido por si (só pode ser apelido!) já me bastava. Por que Tião Cabideiro? Ou
seria sobrenome mesmo? O que sei, com certeza, é que esse cidadão teria muito
mais mistério do que nossa vã filosofia poderia imaginar.
Preciso conhecer
melhor esta figura, pensei. Mas, enquanto esse momento não chegasse (se é que um
dia chegaria), procurei ficar de pescoço bem esticado em seus trejeitos. Quem sabe
poderei pelo menos descobrir a origem de seu apelido?
De
antemão, fiquei sabendo que havia sido um exímio pedreiro, e que, já aposentado,
teria tido somente esta profissão ao longo da vida. (E lá se foi por água
abaixo a mais provável das possibilidades, ou seja, de que teria sido no
passado um fabricante de CABIDES).
Entre uma
observação e outra, uma situação curiosíssima e até certo ponto enigmática, é o
fato de que Tião somente andava com suas vestes superiores - camisas, camisetas
e afins - jogadas sobre o ombro. (Estava aí minha primeira pista e,
possivelmente, a mais intrigante delas). Faça chuva, faça sol, frio ou calor, e
lá vinha ele com a camiseta ou camisa, dependendo do clima, SEMPRE dependurada
sobre o ombro. E pasmem... Impecavelmente passada, engomada, dobrada e religiosamente
posicionada do lado ESQUERDO do ombro. Sei apenas que jamais o havia visto vestido
do umbigo pra cima, ou mesmo carregando seu referido “adorno” do lado direito
do ombro.
E assim
foi, até que, num belo dia, eis que, inesperadamente, e para minha surpresa, o
destino quis que nos conhecêssemos em decorrência de um aparelho que levou na
oficina para reparos. Um tanto acanhado, chegou de mansinho trazendo consigo, além
de uma velha furadeira enguiçada, uma camiseta vermelha passada e engomanda,
jogada sobre o ombro ESQUERDO.
Descobri,
a partir daquele momento, ser ele uma pessoa humilde, honesta, trabalhadora,
mas, sem dúvida alguma, ainda bastante intrigante. E a danada da camiseta
parecia colada em seu ombro, tal a habilidade que ele tinha em se locomover ou
mesmo fazer qualquer tipo movimento brusco. A naturalidade era tamanha, que
parecia se esquecer de que ela estaria ali. Fazia lembrar a habilidade das
antigas lavadeiras, que caminhavam com suas imensas trouxas de roupas
equilibradas na cabeça e sem qualquer tipo de incidente.
Mas, eu
ainda precisava de tempo e, principalmente, intimidade para poder questioná-lo
ou mesmo conhecê-lo melhor. Minha curiosidade aumentava mais e mais, enquanto
um monte de possíveis explicações e teorias descabidas começavam a passear por
minha imaginação. Qual seria a explicação pra que uma pessoa, diante das variações
climáticas, viesse a usar roupas apenas da metade do corpo pra baixo, deixando a
outra metade apenas com suas vestes penduradas sobre o ombro, o esquerdo?
Seria hipersensibilidade
a tecidos? Até então, eu nunca havia visto alergia somente do umbigo pra cima,
sendo assim, fui descartando imediatamente esta possibilidade. Trauma de
infância? Algo como ter sido forçado pela mãe a vestir a camisa pra ir onde não
queria, ou seja: ir à escola (eu mesmo quando criança, não gostava muito de ir
ao colégio), ou mesmo fazer mandados na rua?
Sudorese
excessiva? Conheço varias pessoas, que devido ao contato das axilas com
determinado tecido, passam a exalar um forte odor. Mas, confesso não parecer
que seria o caso do Sr TIÃO CABIDEIRO. Seria então uma exacerbada vontade de mostrar
o tórax? Na idade do Sr Tião, pouco provável e, sinceramente, não abriria um
leque para EXIBICIONISMO.
Preguiça
no vestir, ou nada de tudo isso? Pra ser sincero, acho mesmo se tratar de
mania, TOC, ou mesmo um simples guardião de certo objeto imaginário de desejo
ou decoração.
Desta
forma, entre dúvidas e suposições, o tempo foi passando até que, depois de
certo período, aonde uma amizade sincera veio de fato começar acontecer, vi que
teria chegado o grande momento. Senti que haveria liberdade suficiente para
questioná-lo e que, diante de uma boa prosa, poria fim em minha quase
centenária abelhudice.
E assim
foi, quando, numa bela tarde de domingo, nos deparamos na rua.
Não
haveria oportunidade melhor, pensei. Senti, naquele momento, que alguns
segundos, estariam me separando da minha já CRÔNICA curiosidade (sem
trocadilhos). Enquanto o papo fruía serenamente, quando íamos falando entre
umas e outras coisas sobre futebol, trânsito, poluição sonora e até religião,
que, repentinamente, para seu espanto, diante de um surto meio desesperador, fui
sapecando aquela pergunta que estaria na ponta da língua e ensaiado há quase
dois anos:
- E aí
Tião! Não querendo fugir muito do assunto, vou fazer uso de nossa amizade e tomar
a liberdade de perguntar ao amigo o motivo de somente dependurar a camisa no
OMBRO e não vesti-la? - (Deixei o detalhe do ombro ESQUERDO, para outra
oportunidade). Continuando, disse a ele que seria uma curiosidade coletiva, e
que eu o admirava muito, principalmente em função desse seu comportamento, a
meu ver, um tanto diferente.
Após uma
bela risada foi de imediato me dizendo:
-
Serginho! Vou ser sincero contigo! Você não foi a primeira pessoa a me fazer
esta pergunta! O negocio é o seguinte - prosseguiu ele - Ha mais ou menos vinte
anos, quando vinha descendo de bicicleta o Caxangá, e já ia passando próximo à
antiga Fábrica de Ferraduras, quebrou o garfo de minha bicicleta e tomei um
tombo feio. Por sorte não bati com a cabeça, mas fui de cotovelo com toda força
no chão.
Mostrando-me
uma cicatriz que ficou no local devido à cirurgia, continuou dizendo:
- Recuperei-me
bem, mas uma rigidez enjoada ficou no cotovelo, devido ao trauma e minha
preguiça em fazer fisioterapia. Pra vestir uma camisa então, meu amigo, é sempre
um sufoco. Ficou mais prático e confortável simplesmente jogá-la no ombro.
Continuando
disse:
- CABIDEIRO
foi um apelido que recebi de meu irmão, e acho desnecessário dizer em que se
inspirou. Pena que o CABIDE tenha surgido em circunstância de um incidente
lamentável, concluiu ele. - Rimos muito e cada um foi pro seu lado.
Esta foi à
história do Tião Cabideiro. Aquele brasileiro que gostava de carregar sua
camiseta dependurada no ombro. No ombro ESQUERDO!
Nenhum comentário:
Postar um comentário