Sei que poucos
terão paciência de ler esta croniqueta, mas, ao encontrar-me com um IRMÃO DE ARMAS
que não via há quase quarenta anos, e ter ficado por um bom tempo relembrando
passagens engraçadas de nosso período de TIRO DE GUERRA, é que resolvi postá-la
na integra.
Fim de mais um
dia de instrução e eu, fatigado e morrendo de fome, via meu nome ser estampado
na escala do quadro-negro da sala de instrução do Tiro de Guerra 04-151.
Não acredito!
Logo hoje? E justamente na véspera do meu aniversário?
Pra piorar
ainda mais a situação, era uma sexta-feira e uma pequena festa já havia sido
programada por parentes, amigos e namorada.
Bem! Nem tudo
estava perdido, pensei. Pelo menos, estamos na véspera e não no dia. E assim,
muito a contragosto, lá pelas cinco e trinta da tarde, vesti a velha farda,
calcei meu coturno, firmei o manual pelo sovaco, peguei meu pão com queijo e
minha garrafa térmica de chá mate e me mandei em direção à avenida. Enquanto
seguia solitariamente por aquela rua detrás da fábrica, procurava ao mesmo
tempo ir me consolando na justificativa de que meu aniversário seria apenas no
outro dia.
E que noite
cansativa foi aquela! Pois, coincidentemente, fui premiado com a companhia de
três irmãos atiradores (sentinelas) que faziam de tudo, principalmente nada.
Por sinal, verdadeiros amigos que ficarão guardados com muito carinho na
lembrança.
Foi uma das
madrugadas mais frias que passei, pois, enquanto ali cumprindo meus deveres de
Cabo da Guarda, já quase congelado, via o dia amanhecer.
Havíamos
trabalhado na faxina até pouco mais das onze da noite, pois nada poderia sair
errado. Como todo atirador que se preza, sabia de antemão que, antes mesmo do
dia clarear, salvo em caso de GUERRA, lá estaria nosso comandante a passar em
revista a tropa, ou melhor, o dedo em cada centímetro dos móveis à procura de
vestígios de poeira. Dobrar a guarda em caso de alguma alteração no serviço nos
fazia tremer na base. Era complicado para nós, principalmente se estivéssemos
no comando naquela noite.
Administrar a
limpeza da sede, especialmente quando tínhamos a companhia de alguns atiradores
que só queriam mesmo era bagunçar, dava mesmo vontade de chorar. As horas iam
se passando, o cansaço só aumentando e o serviço não rendia.
E se um
daqueles três vasos sanitários do banheiro não ficasse brilhando como espelho e
cheirando a Pinho Sol? Aí é que a coisa ficava feia pro nosso lado. Isso pra
não falar que ainda tínhamos que fazer a limpeza da área externa, varrendo o
passeio, regando as árvores, molhando com o auxilio de um regador a calçada, além
de dar um trato no pátio, limpar a secretaria e a sala do Sargento (essa então!).
Mas, confesso que a preocupação maior era com aquele bendito banheiro e seus
três imponentes vasos. Teve cabo da guarda que já chegou a passar quase que a
noite toda acordado apenas pra ficar vigiando uma possível sabotagem dos
atiradores, pois era muito comum alguns abdicarem de consultar a alça de mira e,
na hora de encarar o vaso, errar o alvo propositalmente só pra sacanear. No outro
dia era aquele cheiro de banheiro biológico tendo que ser limpo às pressas e em
poucos minutos. Isso nunca aconteceu em minha guarda, mas reinava a expectativa
de que um dia isso poderia acontecer.
Nossa missão
era manter tanto a parte interna quanto a externa da sede impecavelmente limpas
e, se possível, melhores do que nossa própria casa. E isto quase sempre
acontecia.
Mas, voltando àquela
gélida manhã de sábado, tudo transcorria até então dentro da mais perfeita
harmonia, enquanto eu, feliz da vida, não via o momento em que o sargento pudesse
chegar para eu poder passar a guarda com tranqüilidade e sem alteração. Sabíamos de antemão que um oficial graduado do
exército estaria sendo aguardado para uma visita de inspeção, razão pela qual,
naquela noite, por várias vezes, tivemos visitas surpresa do Sargento. O negócio
era certificar-se que a limpeza estaria
além da expectativa.
E o dia amanhecera
trazendo consigo o meu esperado aniversário. Quando faltavam pouco mais de
cinco minutos para a chegada do nosso instrutor, eis que se aproxima de mim, repentinamente,
o atirador de número 40. Bastante pálido e segurando a barriga com as mãos, já
quase de joelhos, implorava para que eu o deixasse usar o banheiro. Disse que
havia comido uma galinha com quiabo e que tinha dado um “revertério” danado.
Como assim? - perguntei!
Num faz isso comigo não! O home tá chegando aí pra passar em revista a sede. O
banheiro tá um brinco e será um dos primeiros a ser checado. Corre ali debaixo
daquela goiabeira no terreno baldio ao lado e deixa acontecer naturalmente. Eu
mesmo já fui lá várias vezes, concluí.
- Num dá tempo
37, dizia ele enquanto, de pálido, passou a ficar vermelho. E seja o que Deus
quiser, pensei. Vai dar “merda” mesmo!
Pelo menos, faço uma boa ação. Pedi que pelo menos fosse o mais rápido e
objetivo possível, pois era norma do TG não deixar nenhum atirador usar o
banheiro antes da inspeção, exceto o cabo da guarda e os três sentinelas.
Enquanto isso,
com um olho no banheiro e outro no relógio, um tanto ansioso, não via a hora em
que o atirador 40 acabasse de cumprir sua difícil missão.
Mas comecei a
perceber que o negócio no banheiro ia de mal a pior. Um odor nada agradável
começava a tomar conta de toda a sede, enquanto o 40 não parava de gemer.
E tinha que
comer quiabo com frango justamente no dia de minha guarda? Ou melhor:
descarregar a galinha enquiabada na hora de entregar meu serviço? E no dia de
meu aniversário?
A coisa tava
tão braba que não haveria tática de guerra, grupo de choque ou de combate que
desse jeito. Pelo menos, que eu soubesse até então nada constava ou fazia referência
em nosso manual de instrução. Era artilharia pesada mesmo, e acompanhada de
barulhos que mais pareciam arma de repetição. Uma busca incessante pela
sobrevivência, diante de agentes químicos, que, cheirando a pólvora, se
espalhava para todas as direções. Verdadeira guerra fria entre irmãos!
Ai não teve
jeito e, com um pedaço de toalha camuflando o nariz, avancei pelo front e, indo
de encontro ao fogo cruzado, perigosamente me aproximei daquela trincheira
mortal. Comecei a implorar pela rendição do amigo “inimigo” insistindo que
arriasse logo a munição e deixasse meu vaso em paz. Pensei em arrombar a porta,
mas um engraçadinho, de sacanagem, havia gritado lá fora que o sargento já estava
subindo as escadas. Nesta altura do campeonato, os gases letais já haviam
arrasado meio quarteirão e, literalmente, provocado uma evacuação em massa da
tropa, ou seja, evacuaram todos da sala para o pátio, restando na linha de frente
somente eu, o atirador 40 e o cheiro. No desespero, cheguei a pensar numa ação
evasiva pelos francos, mas preferi não abandonar o irmão.
Meu Deus! E se
o home chega aqui agora? - pensava eu, enquanto o atirador 40 não parava de bombardear
meu vaso. Mas, quando tudo parecia resolvido, eis que meu amigo aliviado aponta
a cara no corredor e diz:
- Obrigado 37,
você me salvou! Só que tem uma coisa: joguei tanto papel que entupi a privada! Pensei:
danou tudo! Lá se foi meu aniversário! Naquela altura da batalha, o negócio era
enfiar a mão e tentar desentupir de qualquer jeito. Nada seria pior do que
dobrar a guarda e justamente no dia da minha festa.
Nisso, escutei
estacionar o Fusquinha do nosso comandante em frente à sede. Gelei de vez! A
seguir, ouvi o barulho do trinco do portão se abrindo. Agora, só mesmo São
Raimundo pra me salvar, imaginei. Deixei o banheiro de lado e, como se nada
estivesse acontecendo, fui mais do que depressa ao seu encontro me apresentar. É
tudo ou nada, pensava comigo, enquanto caminhava para recebê-lo.
Após deparar-me
com o Sargento no corredor de entrada, fui de imediato lascando aquela
continência dizendo a célebre e famosa frase:
- Atirador 37
do TG 04-151! Serviço sem alteração!” E
as pernas tremiam, pois sabia que teria que conduzi-lo em revista a cada setor
da sede, inclusive ao banheiro! E assim sucedeu.
Após verificar
a guarita, o corredor de entrada, a secretaria e sua sala, começou a se dirigir
em direção ao banheiro. E eu sempre caminhando ao seu lado, procurando ir
fazendo apresentação de cada cômodo da sede. Na verdade, quem começava a ficar
com vontade de ir ao banheiro era eu, principalmente quando me lembrei que, de
praxe e para simples averiguação, ele costumava dar sempre uma puxada naquelas
cordinhas dos vasos. Já pensou o retorno daquela aguaceira nos seus pés? Num
quero nem pensar!
À medida em que
nos aproximávamos do banheiro, minhas pernas tremiam ainda mais. Uma discreta
vontade de também visitar aquela trincheira salvadora só ia aumentando.
Foi aí que
surgiu uma ideia salvadora, ou seja, procurei entrar no banheiro antes dele e
me posicionar bem de frente à porta daquele que teria sido o vaso recém
bombardeado. Algo me dizia que ele iria averiguar os outros dois, mas não iria
olhar aquele em que eu estava. E não deu outra. Ao passar por mim, dirigiu-se
aos outros dois puxando de imediato a cordinha de descarga. Foi quando atinei
que teria me estrepado de vez, pois, de tão nervoso e apressado, não havia
percebido que, ao me posicionar, havia me enganado e ficado perfilado na porta
errada. Já era tarde demais!
Só escutei o
barulho da descarga e a sensação de que algo iria transbordar a qualquer
momento. Para minha sorte, ele. naquele dia, foi superligeiro e, retirando-se
rapidinho, nem mesmo observou como estaria o funcionamento. Saindo por último,
ainda pude escutar aquele aguaceiro começar a escorrer pelo banheiro. Fechei a
porta mais que depressa e deixei a coisa detonar sozinha lá dentro.
A seguir nos
dirigimos para o pátio. Ao perfilarmos para a famosa chamada, pude perceber que
o atirador 40 havia desaparecido. Alguém, naquele momento, cochichou ao meu
ouvido que ele havia se dirigido a um posto avançado e que teria se
entrincheirado no terreno baldio ao lado, bem debaixo de uma goiabeira pra
acabar de descarregar seu resto de munição pesada.
Pra finalizar,
gostaria de dizer que fui um dos felizardos em ter tido a oportunidade de
servir o Tiro de Guerra. Ali conheci amigos verdadeiros (Irmãos de Armas), tive
meus primeiros contatos com uma disciplina rígida que, por sinal, muito veio a
me ser benéfica no futuro. Solidifiquei meu respeito à hierarquia sem deixar de
lutar pelos meus direitos e acertos. Pratiquei o dom da humildade nos momentos
de baixar a cabeça e apenas escutar.
Presto aqui
também uma singela homenagem ao nosso eterno comandante José Carlos, que, por
longos anos, soube conduzir com muita dedicação, honradez e amor, nosso
inesquecível TG 04-151.
Aos meus irmãos
de Armas que se espalharam por este Brasil afora, deixo meu caloroso abraço. Com
certeza, cada um de vocês guarda na mochila muitas histórias pra contar.
Crônica: Serjão
Missiaggia (Nov. 2010).
Foto : acervo do autor
me veio boas lembranças teste tempo saldado 32 valeu
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