Estava tomando
o ponto do meu filho hoje de manhã. Aliás, “tomar o ponto” já dá bem a dimensão
da idade do tomador de ponto. O assunto, fascinante (eca!), era o papel dos
escravos nas lavouras de café no Brasil do século XVIII. Como era matéria de
uma prova do quarto ano primário (hoje ensino fundamental), pensei: ah, é
moleza, e comecei a questionar o moleque.
Começamos
pela Lei Eusébio de Queirós e eu pedi para explicar a importância da lei (que
proibiu o tráfico de escravos no Brasil). Meu filho foi taxativo: a lei foi só
pra inglês ver. Como assim, questionei: a lei proibiu o tráfico de escravos no
Brasil. E ele, da imponência dos seus nove anos, confirmou: foi pra inglês ver
mesmo, pois na época das leis a Marinha Inglesa estava atacando todos os navios
negreiros que passassem pela frente. Então, pai, não foi esse Eusébio aí que
proibiu, foi a Inglaterra.
Conferindo
no livro que ele estava certo, pigarreei e passei para a Lei do Ventre Livre.
Que maravilha, falei, essa foi boa, pois libertou todos os filhos de escravos.
Meu filho corrigiu: é, mas só depois dos 21 anos, o que quer dizer que os caras
teriam que trabalhar até 1892. Isso me causou uma profunda tristeza pois me
lembro que, no primeiro ano do ginásio, fiz uma redação rasgando elogios ao
Visconde do Rio Branco.
Caçando
nos cantinhos da memória alguma outra lei, me lembrei daquela dos Sexagenários e
pedi que ele falasse dessa lei. Foi uma lei que também não serviu pra nada,
pai. Você imagina que, depois de trabalhar igual animal a vida inteira, poderia
existir algum escravo vivo com mais de 65 anos?
Não sei o
que me causou mais revolta: eu ter acreditado que todas essas leis eram
bacanas, ou o fato do meu filho, no quarto ano, ser mais esperto do que eu.
Ferido em meu orgulho de sabichão, perguntei: já que você sabe tudo, por que é
que a Inglaterra resolveu detonar todos os navios negreiros? Ele olhou pra mim
e falou: discuti isso com os meus colegas (foi um trabalho de equipe que a
professora deu) e a conclusão que chegamos foi que não foi por pena dos
africanos porque os ingleses não tinham pena de ninguém. E você, pai, sabe por quê?
Engraçado
que eu também não sabia. Olhamos juntos no Google e descobrimos que o real
motivo foi a concorrência no preço do açúcar, que os britânicos também
exportavam. Não falei? – disse ele.
Meu Deus,
criei um monstro, pensei. Ou pior, um sociólogo.
Texto:
Jorge Marin
Foto : Wade Langley, disponível em http://121clicks.com/wp-content/uploads/2011/07/wadelangley20.jpg
Parabéns pela excelente crônica!
ResponderExcluirObrigado, amigo Nilson!
ExcluirJorge, muito bom , não vou dizer seu texto ou crônica, vou dizer sua estória. Esta estória foi excelente. Com sua estória ( que é história) muitos, que ainda não perceberam certas coisas que aconteceram de verdade na nossa História, tomarão conhecimento e perceberão também que os historiadores nem sempre contaram a verdadeira história.
ResponderExcluirO que foi mais curioso disso tudo, Mika, é que eu jamais deixei de estudar, principalmente Filosofia, e aqueles fatos da História do Brasil estavam meio que cristalizados na minha percepção da forma "em preto e branco" com a qual foram implantados no meu tempo de menino. E hoje o meu menino denuncia isso. Foi emocionante!
ExcluirAinda há esperança de vermos vida inteligente nas próximas gerações!
ResponderExcluirÓtimas as percepções e conclusões sobre as entrelinhas do discursos históricos oficiais.
Neste caso, o pai, com merecido orgulho, pode parafrasear o genial Chico Anysio e dizer ao jovem aspirante a sociólogo: "Meu garouto..."
Sylvio, bota orgulho nisso, pois, num mar de coisas prontas, onde tudo é explicado e justificado, o carinha entendeu perfeitamente a maldade do sistema e, o que é mais importante, sem julgar nem criticar.
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