sexta-feira, 29 de julho de 2011

A COISA

Pintura de Evard Munch (O Grito)

Capítulo 3: Cara a cara com a Coisa

Na semana passada, meu amigo, pálido e com uma visível taquicardia, ensaiava contar o que ocorrera no banheiro da casa da minha tia. Já um pouco mais calmo e confiante, fechou os olhos, respirou, começou a se soltar um pouco, e foi tentando reconstituir, na medida do possível, os fatos perturbadores.
Mal havia começado seu desabafo, quando aquela senhora que foi visitar minha tia (lembram?) abriu a porta da rua, chega até até a varanda e, visivelmente nervosa, olhou para o meu amigo, e gritou:
- Olha o safado ali! Segura aí moço! E pedia que eu o agarrasse.
Já imaginando o desastre que poderia ter acontecido, fingi não escutar e fiz-me de desentendido.
Nesta instante, meu colega saiu em disparada e, de tão assustado, nem se despediu.
Somente no outro dia, quando já estávamos na escola, é que tudo foi revelado e pude enfim ficar a par da verdadeira história.
Após sentarmos na mesma carteira, veio de imediato me confidenciar, baixinho, que nem havia conseguido dormir naquela noite. Ficou na cama tremendo de medo, pensando na possibilidade de que aquela senhora pudesse ir a sua casa buscá-lo. Segundo ele, aquela teria sido a noite mais longa de sua vida. Neste instante, fomos interrompidos pela professora, e ele ficou de me contar tudo no recreio, com mais calma. Aí sim, foram as aulas mais longas da minha vida.
Enfim, ao bater o sinal, ele, mais do que depressa, começou a relatar o que ocorrera. Seu olhar, ainda assustado, parecia estar na expectativa de que pudesse, a qualquer momento, ser surpreendido com a entrada repentina daquela senhora na escola para pegá-lo. Mesmo assim, começou a narrar o seu triste pesadelo, dizendo:
- Na verdade, fui entrando de fininho, pois, além de não conhecer a casa, estava com muita vergonha de encontrar alguém. Mesmo assim, fui prosseguindo e, já alcançando a sala, fui escutando vozes vindas do terreiro. O silêncio interno me encorajou, pois prenunciava que a casa estaria, naquele momento, totalmente vazia. Chegando próximo à cozinha, vi uma porta encostada, e imaginei: só pode ser aqui! Olhei pra um lado, olhei pro outro e pensei: seja o que Deus quiser! Comecei a empurrar a porta devagarinho mas, sob um suave ranger de dobradiça, ela travou. Imaginei que algum sapato ou coisa parecida poderia estar impedindo sua abertura total. Aí forcei, de vez, e empurrei com toda força. Foi aí que eu me estrepei de vez!!! Era mesmo o banheiro, só que, lá de dentro, veio esta voz, terrível, gritando:
- Sai fora, “muleque”! Além de tudo, mal educado! Se você não tem mãe, eu vou te ensinar uma boa lição, seu tarado! Tá achando que é o quê? Desaparece de minha frente, senão te pego! Não vou esquecer seu rosto nunca, seu malcriado!
E, raivosa, socou a porta de volta na minha cara, quase quebrando meu nariz. Aí não teve jeito e, no susto, meio que assim de reflexo, antes de zarpar correndo, acabei olhando de relance e vi, além de uma estranha calçola arriada, uma “coisa” medonha, que eu jamais queria ter visto. Aí reapareci lá fora e o resto você já sabe.

Resumo da ópera: por uns bons anos, este meu colega desapareceu das imediações e a maldição da “coisa” quase acabou me atingindo, pois caí na asneira de compor uma singela paródia (da música Jardineira) em homenagem à ocorrência, e esta que foi minha primeira composição por pouco não me rendeu uma surra. Pois, achando que estava abafando, cantarolei a bendita letra, próximo às pessoas envolvidas. Se arrependimento matasse, já teria ido desta pra melhor. Mas não resisto à tentação de divulgar esta pérola do meu cancioneiro com música do inesquecível Benedito Lacerda, porém com nomes fictícios: Ò Esmerarda por que estás tão triste / mas o que foi que aconteceu / foi o Raimundo que abriu a porta / deu dois suspiros e quase morreu. / Vem Esmerarda, vem meu amor / Não fique triste que o banheiro é todo seu / e o pior de tudo isso: / o Raimundo “quais” morreu...
Enfim, vocês nem imaginam a “dor de cabeça” que esta brincadeira me causou.

Eu já havia mandado este texto para postagem, quando encontrei o meu amigo, hoje cinquentão igual a mim e, achando que ele havia superado o trauma, comecei a relembrar a história, sorrindo, mas, estranhamente, ele começou a suar:
- Serjão, não há um dia da minha vida em que eu não me lembre daquela calçola. Era uma daquelas calças íntimas de pano, tipo ceroulão, com três laços, um na cintura e os outros dois na altura dos joelhos.
Da “coisa” ele não falou. Nem eu tive coragem de perguntar.

(Crônica: Serjão Missiaggia / Adaptação: Jorge Marin)

4 comentários:

  1. A "coisa" da senhora em questão devia ser "uma coisa"!...
    Quem se lembra do Agildo Ribeiro, humorista brasileiro que dizia quando em um dos seus personagens:- "coisa horrorosa!..."
    Ainda bem que há "coisas" e coisas"
    Serjão, você está ficando impossível.
    Mika

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  2. Encantada com a ilustração do famosíssimo "O GRITO" de Munch.
    No livro póstumo de Drummond,"Farewell", o poeta faz uma leitura pessoal desse quadro e alguns outros, também. É um belo exemplo de interlocução da literatura com a pintura. Sobre "O GRITO" ele diz:
    -" A NATUREZA GRITA, APAVORANTE.
    DOEM OS OUVIDOS, DÓI O QUADRO."

    Parabéns pela escolha.
    Mika

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  3. APENAS UMA COISA:
    AINDA ACHO QUE UMA COISA, É UMA COISA E OUTRA COISA É OUTRA COISA.
    TEM GENTE QUE VAI EUFORICO PRA COLOCAR A COISA NA COISA E QUANDO VE, A OUTRA COISA, É OUTRA COISA.
    HOJE TÃO TROCANDO DE COISA COMO FOSSE A COISA MAIS SIMPLES DO MUNDO

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  4. Na forma como foi percebida e contada a situação, daria um ótimo curta metragem. Suspense, mensagens subliminares e aventura não faltam.
    O blog está uma coisa cada vez melhor!
    Sylvio.

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