Foi pegando uma carona no belo texto do parceiro Jorge Marin em
homenagem ao nosso eterno comandante Matilde, que resolvi reeditar esta
postagem. Além de seus ensinamentos recheados de valores, ficarão guardados pra
sempre em nossas memórias os inúmeros causos, muito dos quais bastante
engraçados e que sempre ocorriam. E um desses causos veio acontecer justamente em
uma de minhas guardas noturnas:
.
Era o fim de mais um dia de instrução e eu, fatigado e morrendo de fome,
via meu nome ser estampado na escala do quadro-negro da sala de instrução do
Tiro de Guerra 04-151.
Não acredito! Logo hoje? E justamente na véspera do meu aniversário?
Pra piorar ainda mais a situação, era uma sexta-feira, e uma pequena
festa já havia sido programada por parentes, amigos e namorada.
Bem! Nem tudo estava perdido, pensei. Pelo menos, estamos na véspera e
não no dia. E assim, muito a contragosto, lá pelas cinco e trinta da tarde,
vesti a velha farda, calcei meu coturno, firmei o manual pelo sovaco, peguei
meu pão com queijo e minha garrafa térmica de chá mate e me mandei em direção à
avenida. Enquanto seguia solitariamente por aquela rua detrás da fábrica,
procurava ao mesmo tempo ir me consolando na justificativa de que meu
aniversário seria apenas no outro dia.
E que noite cansativa foi aquela! Pois, coincidentemente, fui premiado
com a companhia de três irmãos atiradores (sentinelas) que faziam de tudo,
principalmente nada. Por sinal, verdadeiros amigos que ficarão guardados com
muito carinho na lembrança.
Foi uma das madrugadas mais frias que passei, pois, enquanto ali
cumprindo meus deveres de Cabo da Guarda, já quase congelado, via o dia
amanhecer. Havíamos trabalhado na faxina até pouco mais das onze da noite, pois
nada poderia sair errado. Como todo atirador que se preza, sabia de antemão
que, antes mesmo do dia clarear, salvo em caso de GUERRA, lá estaria nosso
comandante a passar em revista a tropa, ou melhor, o dedo em cada centímetro
dos móveis à procura de vestígios de poeira. Dobrar a guarda em caso de alguma
alteração no serviço nos fazia tremer na base. Era complicado para nós,
principalmente se estivéssemos no comando naquela noite.
Administrar a limpeza da sede, especialmente quando tínhamos a companhia
de alguns atiradores que só queriam mesmo era bagunçar, dava mesmo vontade de
chorar. As horas iam se passando, o cansaço só aumentando e o serviço não
rendia.
E se um daqueles três vasos sanitários do banheiro não ficasse brilhando
como espelho e cheirando a Pinho Sol? Aí é que a coisa ficava feia pro nosso
lado. Isso pra não falar que ainda tínhamos que fazer a limpeza da área
externa, varrendo o passeio, regando as árvores, molhando com o auxilio de um
regador a calçada, além de dar um trato no pátio, limpar a secretaria e a sala
do Sargento (essa então!). Mas, confesso que a preocupação maior era com aquele
bendito banheiro e seus três imponentes vasos. Teve cabo da guarda que já
chegou a passar quase que a noite toda acordado apenas pra ficar vigiando uma
possível sabotagem dos atiradores, pois era muito comum alguns abdicarem de
consultar a alça de mira e, na hora de encarar o vaso, errar o alvo
propositalmente só pra sacanear. Isso nunca aconteceu em minha guarda, mas
reinava a expectativa de que um dia isso poderia acontecer.
Nossa missão era manter tanto a parte interna quanto a externa da sede
impecavelmente limpas e, se possível, melhores do que nossa própria casa. E isto
quase sempre acontecia.
Mas, voltando àquela gélida manhã de sábado, tudo transcorria até então
dentro da mais perfeita harmonia, enquanto eu, feliz da vida, não via o momento
em que o sargento pudesse chegar para eu poder passar a guarda com tranqüilidade
e sem alteração. Sabíamos de antemão que um oficial graduado do exército
estaria sendo aguardado para uma visita de inspeção, razão pela qual, naquela
noite, por várias vezes, tivemos visitas surpresa do Sargento. O negócio era certificar-se
que a limpeza estaria além da expectativa.
E o dia amanhecera trazendo consigo o meu esperado aniversário. Quando
faltavam pouco mais de cinco minutos para a chegada do nosso instrutor, eis que
se aproxima de mim, repentinamente, o atirador de número 40. Bastante pálido e
segurando a barriga com as mãos, já quase de joelhos, implorava para que eu o
deixasse usar o banheiro. Disse que havia comido uma galinha com quiabo e que
tinha dado um “revertério” danado.
Como assim? - perguntei! Num faz isso comigo não! O home tá chegando aí
pra passar em revista a sede. O banheiro tá um brinco e será um dos primeiros a
ser checado. Corre ali debaixo daquela goiabeira no terreno baldio ao lado e
deixa acontecer naturalmente.
- Num dá tempo 37, dizia ele enquanto, de pálido, passou a ficar
vermelho. E seja o que Deus quiser, pensei. Vai dar “merda” mesmo! Pelo
menos, faço uma boa ação. Pedi que pelo menos fosse o mais rápido e objetivo
possível, pois era norma do TG não deixar nenhum atirador usar o banheiro antes
da inspeção, exceto o cabo da guarda e os três sentinelas.
Enquanto isso, com um olho no banheiro e outro no relógio, um tanto
ansioso, não via a hora em que o atirador 40 acabasse de cumprir sua difícil
missão. Mas comecei a perceber que o negócio no banheiro ia de mal a pior. Um
odor nada agradável começava a tomar conta de toda a sede, enquanto o 40 não
parava de gemer.
E tinha que comer quiabo com frango justamente no dia de minha guarda?
Ou melhor: descarregar a galinha enquiabada na hora de entregar meu serviço? E
no dia de meu aniversário?
A coisa tava tão braba que não haveria tática de guerra, grupo de choque
ou de combate que desse jeito. Pelo menos, que eu soubesse até então nada
constava ou fazia referência em nosso manual de instrução. Era artilharia pesada
mesmo, e acompanhada de barulhos que mais pareciam arma de repetição. Uma busca
incessante pela sobrevivência, diante de agentes químicos, que, cheirando a
pólvora, se espalhava para todas as direções. Verdadeira guerra fria entre
irmãos!
Ai não teve jeito e, com um pedaço de toalha camuflando o nariz, avancei
pelo front e, indo de encontro ao fogo cruzado, perigosamente me aproximei
daquela trincheira mortal. Comecei a implorar pela rendição do amigo “inimigo”
insistindo que arriasse logo a munição e deixasse meu vaso em paz. Pensei em
arrombar a porta, mas um engraçadinho, de sacanagem, havia gritado lá fora que
o sargento já estava subindo as escadas. Nesta altura do campeonato, os gases
letais já haviam arrasado meio quarteirão e, literalmente, provocado uma
evacuação em massa da tropa, ou seja, evacuaram todos da sala para o pátio,
restando na linha de frente somente eu, o atirador 40 e o cheiro. No desespero,
cheguei a pensar numa ação evasiva pelos flancos, mas preferi não abandonar o
irmão.
Meu Deus! E se o home chega aqui agora? - pensava eu, enquanto o
atirador 40 não parava de bombardear meu vaso. Mas, quando tudo parecia
resolvido, eis que meu amigo aliviado aponta a cara no corredor e diz:
- Obrigado 37, você me salvou! Só que tem uma coisa: joguei tanto papel
que entupi a privada! Pensei: danou tudo! Lá se foi meu aniversário! Naquela
altura da batalha, o negócio era enfiar a mão e tentar desentupir de qualquer
jeito. Nada seria pior do que dobrar a guarda e justamente no dia da minha festa.
Nisso, escutei estacionar o Fusquinha do nosso comandante em frente à
sede. Gelei de vez! A seguir, ouvi o barulho do trinco do portão se abrindo.
Agora, só mesmo São Raimundo pra me salvar, imaginei. Ainda num ato derradeiro
de desespero, pedi ao 40 para que, pelo menos antes de sair, fizesse a
gentileza de derramar todo o conteúdo de Pinho Sol no banheiro. Assim foi
feito, e como se nada tivesse acontecido, fui mais do que depressa ao encontro
de nosso comandante pra me apresentar. É tudo ou nada, pensava comigo, enquanto
caminhava para recebê-lo.
Após deparar-me com o Sargento no corredor de entrada, fui de imediato
lascando aquela continência dizendo a célebre e famosa frase:
- Atirador 37 do TG 04-151! Serviço sem alteração! - E as pernas
tremiam, pois sabia que teria que conduzi-lo em revista a cada setor da sede,
inclusive ao banheiro! E assim sucedeu.
Após verificar a guarita, o corredor de entrada, a secretaria e sua
sala, começou a se dirigir em direção ao banheiro. E eu sempre caminhando ao
seu lado, procurando ir fazendo apresentação de cada cômodo da sede. Na
verdade, quem começava a ficar com vontade de ir ao banheiro era eu,
principalmente quando me lembrei que, de praxe e para simples averiguação, ele
costumava dar sempre uma puxada naquelas cordinhas dos vasos. Já pensou o
retorno daquela aguaceira nos seus pés? Num quero nem pensar!
À medida em que nos aproximávamos do banheiro, minhas pernas tremiam
ainda mais. Uma discreta vontade de também visitar aquela trincheira
libertadora só ia aumentando.
Foi aí que surgiu uma ideia salvadora, ou seja, procurei entrar no
banheiro antes dele e me posicionar bem de frente à porta daquele que teria
sido o vaso recém-bombardeado. Algo me dizia que ele iria averiguar os outros
dois, mas não iria olhar aquele em que eu estava. E não deu outra. Ao passar
por mim, dirigiu-se aos outros dois puxando de imediato a cordinha de descarga.
Foi quando atinei que teria me estrepado de vez, pois, de tão nervoso e
apressado, não havia percebido que, ao me posicionar, havia me enganado e
ficado perfilado na porta errada. Já era tarde demais!
Só escutei o barulho da descarga e a sensação de que algo iria
transbordar a qualquer momento. Para minha sorte, ele, naquele dia, foi
superligeiro e, retirando-se rapidinho, nem mesmo observou como estaria o
funcionamento. Saindo por último, ainda pude escutar aquele aguaceiro começar a
escorrer pelo banheiro. Fechei a porta mais que depressa e deixei a coisa
detonar sozinha lá dentro.
A seguir nos dirigimos para o pátio. Ao perfilarmos para a famosa
chamada, pude perceber que o atirador 40 havia desaparecido. Alguém, naquele
momento, cochichou ao meu ouvido que ele havia se dirigido a um posto avançado
e que teria se entrincheirado no terreno baldio ao lado, bem debaixo de uma
goiabeira pra acabar de descarregar seu resto de munição pesada. Menos mal!
Pra finalizar, gostaria de dizer que fui um dos felizardos em ter tido a
oportunidade de servir o Tiro de Guerra. Ali conheci amigos verdadeiros (Irmãos
de Armas), tive meus primeiros contatos com uma disciplina rígida que, por
sinal, muito veio a me ser benéfica no futuro. Solidifiquei meu respeito à
hierarquia sem deixar de lutar pelos meus direitos e acertos. Pratiquei o dom
da humildade nos momentos de baixar a cabeça e apenas escutar.
Presto aqui também uma singela homenagem ao nosso saudoso comandante
José Carlos, que, por longos anos, soube conduzir com muita dedicação, honradez
e amor, nosso inesquecível TG 04-151.
Aos meus irmãos de Armas que se espalharam por este Brasil afora, deixo
meu caloroso abraço. Com certeza, cada um de vocês guarda na mochila muitas e
divertidas histórias pra contar.
Crônica: Serjão Missiaggia
Foto : Facebook